Quarta-feira, 2 de Junho de 2004
Acabam de ser formuladas esta semana, depois de um longo e deprimente processo
de instrução (vulgo «Casa Pia»), as acusações passíveis de serem
sujeitas a julgamento. Tal processo merece (aqui e agora) uma profunda
reflexão sobre o mundo em que hoje vivemos. Um mundo do qual as principais
vítimas passaram a ser as crianças. Assim o confirmam todos os relatórios
internacionais (ONU, UNESCO, Human Rights Watch, Amnistia Internacional, Global
Witness, etc...). Ou seja, nunca nos anais da história moderna tantas
crianças morreram, desapareceram, foram violadas na sua integridade física,
psicológica, moral, à conta de inúmeros crimes (inclusive, algumas
obrigadas, involuntariamente, ou até não - vide EUA -, a neles participar).
Crimes de guerra (Iraque, Médio Oriente, Ásia Menor, continente africano),
crimes sexuais (EUA, Europa, Austrália e Ásia), crimes económicos (mão de
obra barata, sobretudo Índia, Indonésia e China - em torno de Hong Kong),
crimes sociais (fome e mal nutrição generalizadas nos países do terceiro
mundo).
Desenganem-se portanto as pessoas que julgam ser este, hoje, um mundo mais
pacífico, mais justo, ou, grosso modo, mais "evoluído" do que o da(s)
década(s) passada(s). No entanto, (co-)existe de facto esta opinião (em
alguns media), infelizmente onde mais se exigiria que a não houvesse. Tal
prende-se ao facto, e é fácil deduzi-lo, de as vítimas serem precisamente
aquelas que menos voz pública têm, de serem as mais vulneráveis. As crianças
são naturalmente alvos fáceis para todas as ignomínias, e quem (também)
naturalmente as poderia defender (as famílias) facilmente também sucumbe ao
peso inumano do mais terrível dos sofrimentos, e que é, precisamente, a perda
ou lesão (com origem criminosa) dos seus filhos. Dito isto, resta apenas a
considerar a hipocrisia das actuais instituições que, quer o aceitem, quer
não (a História o julgará), a elas cabe directamente e por inteiro a
responsabilidade do actual estado de barbárie civilizacional a que chegámos (e
no «processo Casa Pia» ainda mais infame e revoltante se prefiguram os
crimes, visto esta instituição ser precisamente de órfãos à
responsabilidade do próprio Estado).
Ora, num mundo (moderno, ou pós-moderno, tanto faz) onde nunca os poderes
judiciais e políticos foram tão pensados (questionados), formatados
(regulamentados), instruídos (ensinados) e disseminados (instituídos),
justamente, tal fenómeno acontecer, deixa perplexo qualquer cidadão (bem
pensante). Qual a causa directa que permite, ao revés de todo o bom senso e
empenho, de toda a boa vontade (que ainda possa existir, e existe!), que a
maior das ignomínias seja perpetuada? O que deve ser corrigido? Ou
simplesmente: Porquê?
A resposta impõe-se: é o eixo que vai da política à justiça, e que as
sustém a ambas, que está (cor)rompido. Estando (cor)rompido, vão uma sem a
outra (a política sem justiça e a justiça sem política), ou melhor, ambas
vão (não nos permitamos aqui ser ingénuos!), mas juntas, numa direcção
calamitosa.
Há várias justiças, é certo, mas todas obedecem a um mesmo sentimento
profundo: ser a Justiça, embora tolerante porque de natureza oposta ao crime,
Justa (exacta e objectiva); nunca truncada nem viciada, senão abrem-se as
portas à violência da vingança, à violência da revolta, ou seja, às
violências, infelizmente (porque são violências), Justiceiras. Os cidadãos
(organizados ou não) recorrerão (naturalmente) a estas se, em última
instância, só assim puder a Justiça reclamar-se devida (é o que avisa, e
daí permite, aliás, o 3º preâmbulo dos Direitos do Homem).
Tanto a política como a justiça obedecem a um círculo concêntrico que vai do
maior (global) ao menor (local), do geral ao específico. Que, hoje (face ao
já meio milhão de crianças mortas no Iraque), a ONU (a instância política
superior planetária) tenha sido (ou se tenha) deslegitimizada politicamente
(no Conselho de Segurança) pela maior potência; que seja, precisamente, esta
maior potência a única que se recuse judicialmente a assinar a convenção do
Tribunal Penal Internacional para não se submeter à lei internacional, tal
não restam dúvidas (basta ver a actual proposta de transição para o Iraque
que exclui liminarmente esta hipótese). Não será, finalmente, esta exacta
potência (e quem a ela se associe sem escrúpulos) - a sua ideologia de
marca (onde se conjugam, puro e duro, poder militar e interesses económicos)-,
aquela que mais beneficie (e multiplique) directamente (de forma conspícua) e
indirectamente (de forma oculta) da grande (senão avassaladora) parte dos
crimes hoje perpetuados contra as crianças? Quem em verdade acciona os
mecanismos de exploração desenfreada? Quem propõe uma indústria cultural
onde a violência é o topos recorrente? Quem contorna (a bem, ou a mal) a lei
(internacional)?
O poder, hoje, é uma hidra, já não totalitária (como o foi), mas sim,
gananciosa. Tem uma rede vastíssima e complexa mas aplica sempre a mesma
receita: políticos corruptos - corruptores e corruptíveis - aliados a
interesses (mais ao menos) particulares (ou corporativos) gananciosos; uns
viciam as regras da Justiça, os outros compram-na. Ambos iludem-na. Os
cidadãos sabem-no. Não sabiam é que não tinham limites.
Que em Portugal se faça justiça, então, e (pelo menos, a partir de agora) de
forma irrepreensível, ou seja, Justa (exacta e objectiva), sem ceder às
pressões supracitadas. A Europa e o mundo estarão atentos. E que a Europa
acorde para a sua missão ética no mundo, também. A Justiça (democrática)
não nasceu ela na Grécia? Mas, ao invés, não morreu ela também em Roma (e
com ela toda uma civilização)?
A bom entendedor...
Gabriel Rafael Guerra