Terça-feira, 2 de Janeiro de 2007

João G. Gonçalves - Futecracia III

“As pessoas confiam na falta de justiça para poderem abusar das leis (...). O futebol é apenas a ponta do icebergue.”
Francisco Van Zeller, Jornal de Comércio, 26-12-06

GÉNESE
Imitando o Dr. Fausto que vendeu a alma ao diabo, governantes, autarcas e líderes políticos também fizeram pacto com Satanás. A troco de um suplemento vitamínico de popularidade e de manter o pagode distraído, aplicaram elevados recursos materiais e financeiros, reduções e perdões fiscais,  criaram regimes de excepção, no chamado «fenómeno desportivo»: durante cerca de duas décadas, esta cornucópia de benefícios e privilégios jorrou abundantemente do Estado e  de diversas  Autarquias para  muitos  clubes de futebol.
 Os pactos com Satanás têm um preço elevado, às vezes excessivamente elevado: assim, cumulativamente com o «pântano» e o «monstro», o regime saído do 25 de Abril criou paulatinamente o «lodo», um míni Estado  dentro do Estado, sendo que o primeiro não obedece às leis do segundo, ou melhor dizendo, não têm lei, é regido pela vontade e caprichos de alguns barítonos e outras aves canoras.
 O paroxismo desta miopia política, foi a mega operação do Euro 2004, catapultada a desígnio nacional, alavanca da economia, do PIB e outros encómios de  ópera bufa, onde não faltaram grandes empresas públicas e privadas, tudo encenado para e pelas televisões, cujo  preço  foi pago pelo  Estado e várias Autarquias, quer dizer pelos contribuintes, sem  autorização e dotação orçamental!
Foi este esbanjamento de recursos públicos que transformou clubes falidos em proprietários de elevado património imobiliário e lhes permite viver faustosamente: o processo de acumulação primitiva do futebol português já está feito, agora  resta saber se é para continuar ou se governantes e autarcas ganham juízo e põem um mínimo de ordem na casa e alguma decência nos comportamentos.

OUTROS ANTECEDENTES
Durante uma boa dezena de anos, vários dirigentes de clubes, treinadores, jogadores, etc. fizeram declarações vagas, insinuações e alusões a casos e fumos de corrupção no «sistema», Filipe Vieira, mais ousado, chegou a referir que alguém lhe terá entregado um dossier onde constariam denúncias gravíssimas e apontou o dedo ao alvo: a Liga é o polvo!
Bem pensado, sendo a Liga a soma dos três grandes, que os pequenos se esforçam por imitar, o mal estaria identificado. Este raciocínio pressupõe que a Federação é uma espécie de Clube de Poetas, mas Filipe Vieira parece que já mudou de opinião. Será que  aproveitando a deixa do novo género literário, também vai publicar um livro com base no dossier ou entregá-lo à Judiciária?
“O presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, assumiu que «há corrupção no futebol português», dirigindo fortes ataques ao presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Gilberto Madaíl.
Filipe Vieira considera de «gravíssimo» o que se passou e continua a passar no futebol português, referindo sem medo «que há corrupção», ao mesmo tempo que pediu para que se «assuma isso abertamente», já que a mesma também está instalada «nos juniores e juvenis». 
Depois veio o ataque a Gilberto Madaíl:
«Entreguei-lhe documentos gravíssimos e disse que não estava nas suas mãos fazer alguma coisa. Para presidente da federação, deveria rever a sua postura, pois não pode andar a defender determinados amigos.» “
 (Diário Digital -22-12-2006 )
Esta indignação de donzela ofendida, pressupõe duas coisas: que não há corrupção no Benfica; que Filipe Vieira não sabe com que lida. A corrupção é sempre dos outros, nunca em nossa casa. De qualquer forma, espera-se que desta vez seja convocado, pelo Ministério Público, para depor.
Outros, afirmam exactamente o contrário. Que tudo não passa de insinuações malévolas de invejosos e despeitados que só querem denegrir o futebol, onde não existe a mais leve sombra de suspeita: afinal uns e outros deram o seu contributo para descrédito do mesmo.

CAROLINA EM PALERMO
 Não sei o que faz correr Carolina Salgado, sei que se meteu num corta-mato  perigoso: teve a ousadia ou o atrevimento de picar a onça, com vara curta, e pode vir a pagar caro pela afoiteza.
Carolina cita, no seu livro, dois ou três casos concretos (aliás já conhecidos ou citados na imprensa) e foi o suficiente para o nosso sistema judicial estremecer. Afinal, porquê? Por onde tem andado, assim, tão distraído?
Não li o livro e dele só conheço o que refere a imprensa. Entre outras, duas conclusões parecem fáceis: Carolina não conhece ou não refere a «engenharia financeira» que alimenta e de que se alimenta o planeta do futebol mas  conhece o modus faciendi dos chamados «agentes desportivos», as suas práti-
cas e expedientes, do dia a dia (...).
Por mais de uma vez, sob o olhar orgulhoso de Pinto da Costa, aliás, Jorge Nuno na intimidade, vimos Carolina entre a claque dos dragões. Por muita imaginação que Carolina possua, o seu livro não será só efabulação: não foi ela quem foi procurar Pinto da Costa/Jorge Nuno ao estádio do dragão, foi ele que a encontrou no Calor da Noite:  a credibilidade de Carolina foi aumentando (o «casal» até foi recebido pelo Papa ) enquanto diminuía a de Jorge Nuno.
Trate-se de uma relação mais frequente do que parece à primeira vista e que tem sido relatada na literatura. 
(...) 
Carolina aponta Pinto da Costa como mandante da agressão a Ricardo Bexiga e confessa que contratou os capangas, certamente já colocados em bom recato e, o Expresso, de 16 deste mês, inventaria mais 10 casos de agressões, incluindo uma agressão à própria Carolina, todas envolvendo, alegadamente, Pinto da Costa e as suas gentes. Estes dez casos de polícia tiveram um denominador comum, foram todos arquivados sem consequências mas o ovo da serpente está.
 Atrevo-me a admitir que no livro estão três retratos, o de Carolina, o de Pinto da Costa/Jorge Nuno e o do futebol português. Aliás, Pinto da Costa e o seu duplo, Jorge Nuno, com mais de trinta anos ininterruptos, como dirigente do Clube Futebol do Porto, encarnam a essência do futebol português.
Neste planeta surrealista as claques, patrocinadas pelos grandes clubes, que constituem uma espécie de coro de igreja, com as devidas adaptações,  sendo nesta qualidade que são identificadas nas esquadras de polícia, também merecem uma referência: na época de 2003/04 praticaram 121 incidentes e 19 actos de vandalismo, com 20 detidos, mas melhoraram a sua produtivida-
de e na época de 2005/06 já totalizaram 184 incidentes e 14 actos de vandalismo, com 39 detidos.
O líder dos Super Dragões, Fernando Madureira, escolta frequente de Pinto de Costa, autor confesso de vários desacatos, no seu livro “O líder”,  retrata esta «actividade cultural», que tanto colorido e emoção dá ao futebol, e  que  o governo tem a pretensão de disciplinar... através da sua legalização.
As claques são uma verdadeira mais-valia do futebol e nessa medida devem ser apoiadas pelos clubes e subsidiadas pelo governo: para o futebol, o Orçamento do Estado é de banda larga, ou de mãos rotas, como dizia a minha avó.
Nas últimas semanas os casos têm sido tão frequentes, que nem vale a pena enumerá-los, basta lembrar que o Loureiro I I da Liga continua a assobiar para o lado e o inenarrável Madail garante que o futebol não tem lepra. Com  toda a razão, talvez tenha sida!
Se ainda não sabíamos, ficamos a saber que os «agentes desportivos» são a fauna que frequenta, simultaneamente, as casas de alterne e os corredores dos ministérios, gabinetes de presidentes de câmara e outras instalações do poder.
Quem não se lembra de recepções e almoços ao mais alto nível da hierarquia do Estado, de recepções triunfais, em paços do concelho, a desoras que é suposto estarem fechados, de deputados a faltar aos trabalhos da Assembleia para correrem para os estádios?
A BELA ADORMECIDA ACORDOU
Se eu vou na rua e agrido outra pessoa, ou se faço um contrato e burlo terceiros, devo ser julgado, pelos tribunais, e punido pelo Código Penal.
Se um jogador de futebol agredir outro jogador, ou um dirigente do seu clube praticar uma burla num contrato com terceiros, deve igualmente ser julgado pelos tribunais e punido pelo mesmo Código.
No caso do jogador de futebol, a agressão é mais grave, pois pode dar origem a tumultos no estádio e a penalização também deve ser agravada.
É isto que caracteriza um Estado de Direito e distingue uma sociedade civilizada de uma sociedade primitiva ou de um bando de marginais, mas não é isto que se passa no futebol e  a UEFA (uma organização, com muitos fumos de  corrupção, que nenhuma instancia internacional fiscaliza ou controla) exige acerrimamente que os clubes de futebol tenham uma «justiça» à parte, fora dos tribunais de qualquer país.
Como se tudo isto fosse pouco, o presidente da Comissão Disciplinar da Liga fez um pedido ao Ministério Público, do Tribunal de Gondomar, a solicitar certidões de todas as indiciações obtidas no processo «Apito Dourado», a começar pelas do presidente do FC Porto com o objectivo de... investigar e punir a eventual prática de infracções disciplinares de natureza desportiva.
Quando perguntaram a Gilberto Madaíl sobre as razões da ineficácia dos órgãos disciplinares da Federação, modestamente, respondeu que a Federação não dispões de meios, de polícias, de inspectores, etc., passando-
-se tudo entre palavra contra palavra. Seria difícil, a qualquer outro, encontrar melhor definição para a utilidade dos órgãos jurisdicionais do futebol e para a utilidade de neles participarem magistrados, juízes, desembargadores, etc..
Como pode uma actividade privada, que visa o lucro, dispor de um «sistema de justiça» próprio, paralelo aos tribunais comuns sem termos passado para o reino da ficção ou da farsa? Caso existam duas sentenças para o mesmo caso (dos tribunais comuns e dos chamados órgãos disciplinares do futebol, qual é a sentença que se aplica ou aplicam-se as duas cumulativamente? Isto não é para rir?
Depois de comendadores, desembargadores, juízes, magistrados, inspectores da Judiciária, etc., integrarem há vários anos os chamados «órgão disciplinares» do futebol, em que é que contribuíram para moralizar e disciplinar o futebol, ou este é geneticamente delinquente e não estão lá a fazer  nada?
O QUE RESTA DO APITO
Ricardo Bexiga  foi violentamente agredido, em Janeiro de 2005, mas não por ter denunciado favores de árbitros, a música era outra. Foi agredido porque denunciou a trama   das relações  perigosas e  negócios escuros do «triangulo das Bermudas», onde a justiça  se afunda:  Autarquias, imobiliárias/construtores e presidentes de clubes.
Foi esta a substância inicial das investigações do processo designado «Apito Dourado». Aquela data, o que poderia estar a acontecer  noutras autarquias e teria acontecido com as mastodônticas obras do Euro 2004?
Que chatice depois do forrobodó.
Visivelmente agastado com o rumo das investigações, Adelino Salvado, então Director de Judiciária (Celeste Cardona, ministra da Justiça), despachou os dois inspectores principais   para bem longe do processo, não fosse o diabo tece-las, e as investigações foram orientadas para «a verdade do jogo», figura mitológica que simboliza as arbitragens dos jogos de futebol. Café miúdo, dizem os brasileiros.
Assim, as coisas ficariam bem mais sossegadas e os negócios podiam retomar o seu curso normal.

GOSTAVA DE ACREDITAR EM MILAGRES
A magistrada Maria José Morgado foi nomeada para apanhar os cacos que restam do «Apito Dourado». Existe consenso e, talvez demasiada expectativa, quanto à sua nomeação: o português oscila entre a euforia e a decepção.
O terreno está armadilhado, os interesses bem assestados, as cumplicidades amplamente ramificadas, o que tornam a sua tarefa ciclópica. A magistrada é determinada e competente, mas alguns acham que excede o protagonismo mediático.
Tantas pistas e indícios foram já apagados, pode acontecer tanta coisa imprevisível, mas a suprema ironia deste caso é o Estado, agora, ser obrigado a investigar o polvo, que carinhosamente, alimentou e ajudou a criar: sem o apoio do Estado e das Autarquias o futebol jamais seria o que é.
Aqueles que esperam que acabe com a corrupção no futebol estão enganados.  Maria José Morgado não vai poder fazer milagres e se conseguir levar a julgamento um ou dois barítonos, já não será mau. Afinal, até agora não se nota nenhuma mudança política de fundo, em relação ao futebol, simplesmente tornou-se insustentável fingir que não acontecia nada.
O recente Congresso do Desporto, promovido e organizado pelo governo, tinha um objectivo claro: arranjar novas formas de transferir mais dinheiro para o futebol. Esta politica foi imediatamente posta em prática e as transferências duplicaram, pois as receitas exponenciais do euro milhões estavam ali a saltar.
A Secretaria de Estado da Juventude e do Desporto,  designação sofisticada do Ministério do Futebol, continua na dependência directa do primeiro-ministro, hierarquicamente acima do Plano Tecnológico, e não foi extinta nem, sequer, o Secretário de Estado foi demitido.
O futebol não é actividade mais corrupta, noutros sectores corre muito mais dinheiro, logo mais tentações, mas parece ser um vírus muito contagiante e, sobretudo, habituou-se à vida airada da impunidade.
Não sendo possível levar à barra do tribunal alguns políticos e autarcas que venderam a alma ao diabo, restamos a esperança de que venham a ser julgados no tribunal da censura pública.

João G. Gonçalves


 
publicado por Carlos A. Andrade às 17:26
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