Segunda-feira, 28 de Março de 2005
O Partido Socialista propõe a seguinte questão para referendar o aborto: "Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras dez semanas, com o consentimento da mulher, em estabelecimento legal de saúde?".
Ora, o Partido Socialista é ardiloso na pergunta que deseja fazer. A questão de referir o "estabelecimento legal de saúde" é uma forma notável de fazer crer aos eleitores, que os defensores do não desejam que as mulheres continuem a abortar na clandestinidade e sem segurança. Parece-me por isso, absolutamente escusado referir-se na pergunta que o estabelecimento de saúde é legal, como se outra coisa fosse admitida numa reforma da Lei.
Por outro lado, a questão do consentimento da mulher também me parece muito importante. De resto, essa é para mim a questão mais complicada de toda a despenalização do aborto. Para a criação de vida, homem e mulher são igualmente indispensáveis. Não há motivo nenhum para que o critério da decisão sobre a vida gerada recaia unicamente sobre a mulher. Se o homem pretender ter uma palavra na decisão, tem de ser ouvido. Se porventura não quiser, só nesse caso a mulher poderá decidir unilateralmente o futuro da vida que geraram.
Esta situação tem atribuído à figura do homem, uma figura insignificantemente secundária. Talvez por inépcia. Os homens não se mobilizaram para enfrentar as manifestantes que defendiam que as barrigas eram suas, com um "... mas o esperma é meu". A Senhora Odete Santos preocupa-se certamente com o óvulo, mas olvida o sémen. Como quererão gerar vida, as senhoras de suas barrigas, com dois óvulos?
Acho, por tudo isto, que o papel do homem deve ser considerado no mesmo plano que o da mulher. A escolha tem de ser dos dois. E na eventualidade de não haver disponibilidade (em que dimensão for) para a mulher cuidar de um filho (e para tanto deseje abortar), o pai poderá ser garante de uma boa educação e salutar crescimento da criança indesejada (unilateralmente pela mulher).
Mas não só destas questões se faz a discussão do aborto. Há uma questão de fundo, a questão da vida. Nesse aspecto, eu defendo que não há direitos de propriedade nas opiniões. Não são os católicos que estão contra, nem a esquerda libertina que está a favor. É admissível o católico (menos assíduo provavelmente) que defende a despenalização do aborto, como a bloquista que defende a vida. Logo aqui, devemos acabar com todos os estereótipos ou externalidades negativas da discussão.
O aborto não resolve o problema das crianças indesejadas e dos abortos sem condições de saúde. Assim como a pena de morte nos Estados Unidos não resolveu o problema da criminalidade. Quando se considerou eficaz, para acabar com a criminalidade, penas tão pesadas quanto a pena de morte, foi esquecido que se abriria o precedente da autoridade para matar. Essa autoridade estaria bem protegida pela delegação constitucional, mas o precedente estaria aberto. O valor da vida humana estaria, irremediavelmente, diminuído. Nos nossos dias, nos Estados Unidos, assistimos a uma criminalidade da mais brutal que se conhece nas democracias ocidentais. Recentemente, mais um estudante entrou numa escola e matou uma dezena de colegas, uma professora e um segurança. A diferença entre o estudante e o juiz, é que o juiz tem a protecção da constituição, e o estudante mata com a sua autoridade individual. Mas ambos encerram a vida, usando o mesmo precedente: o poder para executar.
No plano da interrupção voluntária da gravidez, uma vez que se inicia o processo de vida, no dia um, não há diferença (em meu entender) para a vida da segunda semana, do segundo mês, ou mesmo se quisermos dos dez anos. A vida começa iniciando-se um processo que culmina na morte. Durante todo esse processo, a vida é sempre a mesma. Com significativas alterações, é certo, mas a vida do último momento antes da morte, é a mesma do primeiro minuto de vida.
Assim sendo, a legalização do aborto (que para mim tem o mesmo resultado da despenalização) é uma manipulação da vida. É uma escolha, uma permissão. Dá-se ao livre arbítrio a legal previsão para optar pela vida, ou não. Socialmente isto parece-me arriscado. Tão arriscado quanto me parece a clonagem. E tão arriscado quanto qualquer outra forma de manipulação humana da vida, seja em que dimensão for.
Esta forma legal de cortar o mal pela raiz (literalmente), em nada favorece um valor essencial, que não advém obrigatoriamente de dogma religioso, e que é o respeito absoluto pela vida humana. O nosso respeito pela vida humana, que é a base de tudo, deve estar presente no nascimento de vida (manipulado) ou no seu fim (também controlado).
Coisa diferente é o problema que se nos coloca, em relação ao avanço científico da Medicina, na procura de curas para as doenças mortais, que necessita de uma base empírica estribada no recurso à vida humana. Abstractamente, a descoberta de cura para as piores doenças, parece-nos argumento razoável para qualquer tipo de actividade científica mais manipuladora da vida humana. As vidas que essa descoberta salvará, compensam de forma segura, todo o caminho arriscado que se tem de seguir. Mas ainda assim, estes movimentos científicos devem ser devidamente acompanhados e só admitidos quando causas fortes (e avaliadas por sábios) determinem a validade das experiências. Nem aqui se pode falar numa generalização perigosa, concedida a todos os promitentes investigadores.
Há por tudo isto, um valor que devemos preservar sempre: a vida humana. Na nossa autoridade individual, na Justiça, nas investigações científicas ou na interrupção voluntária da gravidez. Esse valor deve ter as suas bases na nossa própria consciência, perdendo o vínculo à exclusividade das relações metafísicas.
José Pedro Costa e Silva