Terça-feira, 19 de Setembro de 2006

João Gomes Gonçalves - Centralismo democrático

O Presidente da Câmara Municipal de Setúbal, em conferencia de imprensa, informou os setubalenses e também o país que renunciava ao mandato, por exigência da concelhia de Setúbal do Partido Comunista, deliberação que aceitou.
Acrescentou que não estava à espera daquela deliberação mas que se submetia à disciplina partidária e aproveitou para lembrar o seu passado de vinte e seis anos consecutivos como autarca: três anormalidades de uma só vez.
Entalado, entre a sua eventual destituição, por via administrativa, e a perda de apoio partidário, Carlos de Sousa percebeu que não tinha saída e engoliu, em público, o sapo numa atitude inédita na nossa democracia. Aparentemente, Carlos de Sousa pensava que poderia evitar a destituição administrativa mas o Partido Comunista não terá querido correr o risco de uma batalha com custos eleitorais ou, mais prosaicamente, aproveitou a oportunidade para ajustar contas pelas opiniões menos ortodoxas expressas pelo autarca: o centralismo democrático resolveu o problema.
Todo o mundo percebeu que era isto que estava em causa mas os protagonista do caso resolveram tomar os setubalenses e, não só, por parvos.
O Partido Comunista informou que era um problema de renovação de quadros, que o «melhor homem» nem sempre é o «homem melhor», e outras banalidades do género.
Como Carlos de Sousa foi reeleito há menos de um ano, o PCP acordou tarde para a sua mitológica e sempre adiada renovação que quadros e o autarca, simplesmente, não explicou nada.
Setúbal tem cerca de 114 mil habitantes, é uma importante cidade de província e não deveria ser tratada com tanta ligeireza ou menosprezo.
Pelo ineditismo, ou por qualquer outra razão, o caso teve destaque na comunicação social e fez correr alguma tinta, pois pode-se extrapolar para o plano geral dos princípios.
Vital Moreira (Público de 29.08.2206) teorizou sobre a legitimidade (não sobre a legalidade) de os partidos avaliarem o desempenho dos seus representante eleitos (o que está fora de causa em relação a qualquer partido) e de os destituírem dos respectivos cargos, o que é matéria completamente diferente.
Cito parcialmente: “Por isso, não só é natural, como até desejável que os partidos mantenham um escrutínio sobre o exercício do mandato dos seus eleitos e possam mesmo retirar-lhes o apoio e instá-los à demissão, caso vejam motivos para isso, desde que as razões sejam transparentes e desde que se mantenha, em última instância, a liberdade individual do titular do mandato.”
Vital Moreira omite duas coisas: que o escrutínio é realizado, anormalmente, sobre menos de um ano de mandato, o que só poderia significar uma avaliação muito negativa, e que a disciplina partidária do PCP não permite veleidades de «liberdade individual», como ele muito bem sabe. Quanto às razões transparentes, estamos conversados.
O facto de o próprio Carlos de Sousa se ter manifestado surpreendido com a deliberação do «colectivo», de que ele próprio fazia parte, revela, simultaneamente, o secretismo da decisão, certamente tomada à sua revelia, e a natureza do centralismo democrático.
Opinião oposta, manifestou Jorge Miranda no artigo “O caso de Setúbal – uma questão de princípio” (Público de 31. Agosto. 2006). Cito-o: “A democra-
cia moderna é, por certo, uma democracia de partidos, mas não deixa de ser, antes disso, uma democracia representativa. Quer dizer uma forma de governo assente numa relação directa e imediata entre os cidadãos eleitores e os cidadão que se submetem ao sufrágio – uma relação ascendente, traduzida na escolha que aqueles fazem periodicamente, e numa relação descendente, manifestada na, responsabilidade, na sujeição às criticas, na prestação de contas dos eleitos perante os eleitores.” (sublinhado meu).
“Em alguns municípios e estados norte-americanos existe a figura do recall, através da qual o povo, verificados certos pressupostos, pode revogar o mandato...” (No caso de Setúbal, quer o PCP, quer o autarca, desprezaram qualquer esclarecimento mínimo sobre o caso).
É, portanto uma questão de princípio que está em causa, pois se a moda pegasse, poderíamos continuar a assistir à destituição de autarcas e de deputados, segundo a conveniência das direcções partidárias, seus cálculos eleitorais, etc. com manifesto desrespeito pelos actos eleitorais e respectivos eleitores: um esvaziamento das eleições democráticas «corrigidas» pelas cúpulas partidárias, sem a mínima intervenção dos eleitores.
O Centralismo Democrático faz parte do código genético do PCP, de tal forma que, mais de trinta anos depois do 25 de Abri, ainda continua a reger a sua organização e modo de funcionamento interno, com fica exemplarmente demonstrado com a destituição imposta ao Presidente da Câmara de Setúbal.
Esta combinação de dois contrários – na realidade o centralismo devora a democracia, como a história provou – foi criada, de forma incipiente, no princípio do século XX, por Lenine com uma finalidade muito concreta: tendo verificado que os partidos social-democratas, criados em regimes democráti-
cos, não tinham qualquer hipótese de sobrevivência na Rússia autocrática era necessária uma organização política que pudesse enfrentar a repressão policial da ditadura czarista.
Para fazer oposição política e derrubar o regime era necessário um partido forte, centralizado, constituído por revolucionários profissionais (não eleitos...), sujeitos a uma disciplina tipo militar. Este partido de «novo tipo», foi alvo de várias críticas, na época, especialmente de Rosa Luxemburgo, e Lenine justificou que se tratava de uma organização para enfrentar uma situação concreta, a Rússia czarista, e numa época histórica também concreta.
Feita a revolução e conquistado o poder acendeu-se o debate, dentro do partido bolchevique, sobre a Democracia Operária, a organização do novo Estado e a organização interna do partido. Aquilo que de forma fragmentada e pouco clara se entendia por centralismo e por democracia, começou a ser clarificado no princípio dos anos 20.
“Constatamos, ainda, que a organização definida em «Que fazer?» nada tem a ver com a noção-definição do Centralismo Democrático tal como ela aparecerá, e somente virá a aparecer, muito mais tarde, e primeiro de maneira imprecisa (nos anos 20, em torno do 10.º congresso do PCR e do 2.º congresso da Internacional Comunista).”... “Enfim, é necessário citar aqui a 12.ª das famosas 21 condições de adesão à Internacional Comunista, onde aparece a fórmula aproximada de centralização democrática:
“... Na época actual de encarniçada guerra civil, o Partido comunista só desempenhará a sua função se estiver organizado do modo mais centralizado, se uma disciplina de ferro, próxima da disciplina militar for admitida nele e se o seu organismo central estiver munido de amplos poderes, exercer uma autoridade incontestada, beneficie da confiança unânime dos militantes”.
Estaline encarregar-se-á de teorizar este embrião e, principalmente, de aplicar os seus princípios «revolucionários» com os resultados que a história apresenta.
As consequências não se fizeram esperar nos vários Partidos comunistas:
• Unanimidade tanto nas opiniões como nas votações dos dirigentes e das resoluções políticas,
• Ausência da liberdade de palavra, de critica e de opinião,
• Culto do chefe apresentado como um génio e colocado acima dos outros militantes,
• Ausência de informação aos militantes (a imprensa do Partido não publica opiniões divergentes nem factos embaraçosos),
• Perpetuação dos dirigentes nos cargos de direcção,
• Todos os órgãos intermédios e inferiores reduzidos à categoria de executantes das deliberações da cúpula,
Esta farsa da Democracia Operária, pretensamente, superior à Democracia burguesa terminou como, por vezes acontece, em tragédia: no seu relatório ao 20.º congresso do PCUS (1956), Nikita Kroutchev, informou os seus «camaradas», que dois terços dos participantes no 17.º congresso (Janeiro. 1934), e outros dois terços dos membros do comité central, designados neste mesmo congresso, foram mortos nas purgas estalinistas.
Segundo Estaline, a revolução socialista de Outubro, teria sido feita por um bando de renegados traidores ao serviço do imperialismo...
Sabemos também que foram dizimados vários milhões de pessoas, tudo sob direcção do Estado e do Partido regidos pelo Centralismo Democrático.
Que nos dias de hoje, ainda existam alguns (poucos) partidos comunistas que se regem pelo Centralismo Democrático, e que alguns milhares de militantes acreditem neste embuste é coisa bem difícil de explicar: Carlos de Sousa pode agora, por experiência própria, meditar nas vantagens do sistema que o destituiu e no qual tem acreditado.
João Gomes Gonçalves







publicado por quadratura do círculo às 19:18
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